sábado, 12 de dezembro de 2009

A ÉTICA E A IGREJA

"Vós não sabeis de que espírito sois" disse Jesus em Lucas 9.55 aos irmãos Tiago e João, que, quando perceberam que uma aldeia de Samaria se recusava a permitir a passagem de Jesus, perguntaram-lhe se gostaria que pedissem ao Pai que mandasse fogo do céu para destruir aquela vila. Jesus explicou que o filho do homem não veio para destruir o alma dos homens, mas para salvá-los. Jesus estava ensinando ética para os seus discípulos. O que eles sugeriram não combinava com caráter da obra, da pessoa e da natureza de Cristo. Ética é isso, a coerência entre meio e o fim. Sei que há muitas outras definições possíveis, mas, ficarei com esta, que aponta para a finalidade e a natureza como norte. O meio pode ser um pensamento, uma motivação, uma atitude, um ato, etc.. Tiago e João faltaram com a ética porque não entenderam quem eram, portanto, não sabiam como se portar. Porque quem não sabe quem é e para o que existe, não sabe o que pensar, que motivação deve ter ou aceitar, que atitude deve acalentar, que ação deve tomar. Jesus, ao contrário desses discípulos, sabia quem era, se chamou de o filho do homem, sabia que era o grande representante da humanidade, o modelo de gente e o único caminho para a nossa salvação. Jesus sabia, assim, exatamente, como deveria se portar em todos os sentidos.

Para falar sobre a relação entre a igreja e a ética, temos de em entender o que é a que igreja. A igreja é a comunhão dos seres humanos que receberam a mesma revelação que Pedro e que, portanto, adora a Jesus. A revelação que Pedro recebeu foi de que Cristo é o filho do Deus vivo, portanto, é Deus, e Deus a gente adora. Adorar a Cristo é proclamá-lo, ele, a encarnação da virtude de Deus e imitar a Jesus de Nazaré. Porque o João disse que quem diz estar nele deve andar como ele andou e Paulo disse de si mesmo que ele era um imitador de Cristo, e que nós deveríamos seguir seu exemplo, disse, também, que vivia para anunciá-lo. Assim, a igreja é a comunhão de pessoas que, individual e comunitariamente, no poder do Espírito, imitam e anunciam a Jesus de Nazaré, o Cristo, no seu dia-a-dia, em tudo o que fazem. O Cristo que a gente imita é o Cristo que habitou entre nós. Porque Paulo disse que a gente devia contemplar a glória do senhor e não o senhor da glória; e a glória do senhor é Jesus de Nazaré, o Cristo, fazendo da vontade e comunhão com Deus a sua comida e bebida, e andando por todos os lugares fazendo o bem para todas as pessoas. Também, temos de lembrar que, quando João estava nas regiões celestes chorando porque não havia quem pudesse tomar o livro da mão daquele que estava sentado no trono, um ancião apontou para ele o leão da tribo de Judá, porém, tudo o que ele conseguiu ver foi o Cordeiro que foi morto. O céu pode falar do leão, porém, a gente só vê o cordeiro, se temos de imitar alguém, só podemos fazer isso em relação a alguém que a gente pode observar, e a gente vê o cordeiro, portanto, só dá para imitar o cordeiro. A espiritualidade cristã não é a do leão mas, a do cordeiro. Isso deveria influenciar a nossa liturgia, de modo que tanto as nossas músicas como os demais movimentos litúrgicos deveriam nos mostrar o cordeiro, que foi morto e que ressuscitou ao terceiro dia, em sua devoção ao Pai e serviço aos homens.

A igreja também é um homem coletivo, Paulo disse que Jesus Cristo criou, nele mesmo, um Novo Homem, esse novo homem é fruto da reconciliação entre judeus e gentios. Recordemos que, para a mentalidade judaica, o mundo estava dividido em dois grupos, judeus e gentios. O que os separava era a compreensão e o relacionamento com Deus, os judeus sabiam de tudo sobre Deus e com ele tinham comunhão, os gentios, por sua vez, não tinham nada, estavam sem Deus no mundo e, portanto, sem senso de finalidade e sem esperança. Jesus Cristo ao apresentar-se a ambos como a única possibilidade de realmente se ter acesso às promessas de Deus, colocou-os numa mesma base, acabou a briga, tanto um quanto o outro precisam de Cristo para ter Deus. A medida que judeus e gentios vão admitindo isso, e se rendendo a Jesus, passam a formar a nova humanidade, porém, com uma diferença significativa em relação a anterior, são habitação do mesmo Espírito e passam a se amar tanto que se essa unidade, o homem coletivo, fruto desse Espírito, aparece. E a imagem e semelhança da Trindade é plenamente manifestada. Então, viver a Igreja é fomentar o surgimento dessa comunidade que manifesta essa unidade. Isso, também, deveria dar o tom de nossa liturgia; vocês já se deram conta de quantas músicas nós cantamos enfatizando a primeira pessoa do singular, eu, eu, eu... onde está o nós, quando vamos aprender a nos ver a partir da comunidade? E tem mais, a igreja também está identificada com o Reino de Deus. Em Daniel o Reino é um domínio exercido por um povo que nunca o perderá; em Apocalipse é um povo de sacerdotes que reinará sobre a terra; em João Batista o Reino exige que as pessoas se arrependam, o que vai desembocar na prática da solidariedade; na fala de Jesus, que confirma João, o Reino é um sistema onde o poder é o serviço; é um lugar que só pode ser visto do lado de dentro, pois, tanto para ver como para entrar a pessoa tem de nascer de novo, logo, só vê se entrar, então, quem viu, viu do lado de dentro; e é tão exclusivista que só pode participar dele quem rompeu com tudo para viver apenas por ele; é um lugar onde só a vontade de Deus é feita; é uma realidade a ser vivida e a ser aguardada, assim como, uma mensagem a ser anunciada prioritariamente aos pobres. Na fala de Paulo, o Reino é um estado de alegria, paz e justiça, onde o trabalhador é o primeiro a desfrutar de seu trabalho; onde quem colheu de mais não tem sobrando e quem colheu de menos não passa necessidade, e todos trabalham para acudir ao necessitado. A Igreja é o povo do Reino, que o vive e o sinaliza. Ser ético, então, para a Igreja, é ser coerente na história, em meio a sociedade, com a complexidade de sua natureza e finalidade. Em que músicas, leituras e orações, mesmo, nosso compromisso como povo do reino aparece? A ética começa na liturgia, na forma como nós apresentamos o nosso culto a Deus.

A gente é ético no contexto onde a gente vive. O nosso contexto é o Brasil, país de contrastes perversos: uma das maiores economias e um dos piores índices de distribuição dessa riqueza; uma tecnologia desenvolvida ao lado dos piores índices de alfabetização e de aquisição de cultura; uma das arquiteturas mais reconhecidas e respeitadas ao lado de um dos maiores de índices de déficit habitacional e de submoradias; um dos maiores territórios do planeta, com terras das mais férteis ao lado dos piores índices de distribuição de terra; uma das mais eficazes agriculturas ao lado da fome e da subnutrição; uma medicina das mais desenvolvidas ao lado de índices estarrecedores de mortalidade infantil; uma das legislações mais avançadas na área dos direitos humanos ao lado de graves índices de violência contra a mulher, abuso de crianças e adolescentes e prática de tortura; um dos códigos penais de maior senso humanitário ao lado de um dos sistemas carcerários mais aviltantes e degradados; uma das democracias raciais mais celebradas ao lado de um racismo pérfido, pois, sutil, não confessado e disfarçado de problema sócio-econômico, onde o negro, cantado em prosa e verso, não consegue ser cidadão e está condenado à pobreza e a ignorância; uma das constituições mais avançadas ao lado dos piores e mais corruptos políticos encontrados numa nação classificada entre as modernas; um dos sistemas de votação mais avançados ao lado de um processo eleitoral marcado pela preponderância do poder econômico e por vícios que perpetuam no poder uma casta de caudilhos, sistema onde se tem a obrigação do voto mas não se tem o direito de veto, onde o eleito pelo povo transforma o mandato em patrimônio pessoal e fonte de riqueza; uma cultura marcada pela criatividade ao lado de um mercado cultural colonizado e emprobecedor; um dos povos que mais confessam a existência de Deus ao lado de uma vergonhosa manipulação religiosa e de arraigadas práticas de superstição, que o tornam prisioneiro de forças malignas.

O que significa agir de forma coerente a nossa natureza e finalidade num contexto desse? Vou tentar responder a essa pergunta apresentando, salvo melhor juízo, algumas posturas. A face mais visível e, aparentemente, a que mais cresce da igreja brasileira ao invés de denunciar a injustiça social e propor e viver uma economia solidária, passou a pregar uma teologia que sustentava a desigualdade ao afirmar que a riqueza deveria ser o alvo do crente, e que o caminho é a fé atestada pelo nível de contribuição e pela capacidade de arbitrar, por decreto, sobre o que Deus deve fazer; ao invés de denunciar a miséria e a dívida do estado para com os excluídos passou a denunciar a provável pequena fé dos desgraçados; ao invés de socorrer aos enfermos, enquanto denunciava o descaso, começou a apregoar uma cura instantânea para aqueles que, com um certo tipo de fé, freqüentarem o ministério certo; ao invés de combater o racismo passou a estigmatizar como maligna tudo o que se relaciona com a cultura negra, como se o demônio fosse nego e, portanto, tudo o que é negro fosse demônio; ao invés de denunciar a corrupção passou a fazer negociatas com sórdidos representantes da camarilha que mantém o país no subdesenvolvimento, assim como, a participar, sem restrições, do jogo político, cassando o direito político de suas ovelhas pelo constrangimento para que votem nos candidatos escolhidos pelos líderes; líderes que ao invés de praticarem o serviço para que se forme uma comunidade, tornaram-se caudilhos que se locupletam às custas da boa fé de gente quer apenas queria Deus, e que se escondem em títulos pomposos enquanto transformam a igreja numa cultura de massas fácil de manobrar; ao invés de pregar a graça que foi de modo abundante derramada através de Cristo Jesus, passou a demandar sacrifícios acompanhados de doações cada vez mais constrangidas, para que o fiel se tornasse apto para receber a bênção desejada; ao invés de promover a mansa espiritualidade do cordeiro, promoveram a esquizofrênica espiritualidade do leão, que tenta transformar em “já” o “ainda não” do reino, enquanto transforma o “já” do reino em “nunca”; ao invés de viver, sinalizar e anunciar o reino, passaram a caçar os principados e potestades nas regiões celestiais, ora localizando e derrubando os seus postes ídolos, ora ungindo de alguma forma criativa a cidade, inaugurando o que James Houston chamou de evangelização cósmica; ao invés de fomentar o surgimento da comunidade do Reino importou modelos de agrupamento que aumentam a produtividade da igreja na promoção do crescimento numérico, que passou a ser aval de benção divina; ao invés de pregar e praticar a vitória de Cristo na cruz e na ressurreição sobre todos os agentes do mal, passou, de um lado, a pregar uma teologia que mais infundia medo do que fé, e, de outro lado, a, segundo, o articulista Ricardo Machado, umbandizar as igrejas.

É claro que tivemos problemas éticos em outros segmentos de igreja, sim, porque Igreja Brasileira é uma categoria ideológica evocada nas generalizações, o que existe, de fato, é uma gama de Igrejas no Brasil, não estou falando das divisões denominacionais, que, aliás estão desfiguradas, mas, dos vários jeitos de ser igreja, que acabam, por se constituir em segmentos estanques entre si. Houve segmento que, diante dessa realidade cruel recrudesceu o fundamentalismo legalista e alienado, outro houve que assumiu a igreja como uma empresa, sonhando também com impérios, e passou a importar modelos de gerenciamento que a organizasse, desenvolvesse excelência ministerial e produzisse crescimento, usando, muitas vezes, o princípio do “apartheid”, e as ovelhas foram feitas mão de obra e os pastores foram feitos gerentes de programa. O segmento da missão integral, em boa parte, migrou para a teologia urbana, sob, infelizmente, muita influencia de pensadores do primeiro mundo, ótimos, mas, que enfrentam uma cidade secularizada, problema que, ainda, não temos, uma vez que nossas cidades estão muito mais para um grande “shopping” religioso do que para o secularismo que o primeiro mundo enfrenta, essa opção colocou-nos sob o risco de perder a visão do macro, além disso, de alguma forma, em relação à “missão integral”, paramos de pensar, por isso a “missão integral” não se tornou uma teologia, continuou a ser, como diz Ziel Machado, uma resposta, que, ano após ano, continua a repetir que para evangelizar é preciso considerar o contexto sócio-político-econômico-cultural daquele que se vai evangelizar, e que missão integral é o evangelho todo para o homem todo para todos os povos; é preciso que descrevamos mais este evangelho, este ser humano, este contexto e as novas realidades que se impõem ao labor missionário, porém, nem sequer, ainda, trabalhamos na frase para contemplar o corte de gênero, de modo a não discriminar o sexo feminino; também, pudera, depois de 1994, quando, no congresso da AEvB, nos dividimos, só voltamos a nos encontrar, alguns de nós, no final dos anos 90, em Curitiba, sob convite do Osmar Ludovico para um tempo de oração, que acabou por gerar uma carta comum, que, segundo testemunhos, produziu algo na direção da prática da missão integral. Nesse tempo todo continuamos a falar em “missão integral”, mas, os livros de Rene Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana, Orlando Costas, Viv Grigg, entre outros não estão mais entre nós, ou porque há muito esgotaram ou por nem terem sidos impressos em português, e mesmo autores brasileiros desapareceram ou ficaram muito tempo fora das prateleiras das livrarias. A série Lausanne está sendo retomada, e como é bem vinda! Mas temos de ir mais longe, temos o desafio de transformar essa resposta numa teologia, porque é com teologia que se edifica igreja.

Bem, certamente, nenhum segmento conseguiria total coerência, logo, não precisamos entrar em desespero, pois, a crise na fé cristã não é o pecar é o não se arrepender.

E tem o outro lado, Jesus Cristo não diz apenas: “vós não sabeis de que espírito sois”, diz, também: “vinde benditos de meu pai”. Nos vários segmentos da igreja, com maior ou menor informação sobre essa proposta veiculada a partir do congresso de evangelização realizado em Lausanne em 1974, a resposta apareceu, pipocaram programas de ação social, creches, distribuição de cestas básicas, distribuição de alimentos para moradores de rua, entre outros. Os programas começaram assistencialistas, mas, pouco a pouco, foram se tornando mais voltados para soluções estruturais. Milhares de ONGs foram criadas com as mais diferentes finalidades de cunho social: escolas, casas-lar, programas de desenvolvimento comunitário, programas de alfabetização, e muito mais. Um leve mas decisivo movimento do Espírito tem se feito sentir cada vez mais, o interesse de grupos dos vários segmentos em se ajuntarem numa frente evangélica pela inclusão social (explicar); a recente criação da “RENAS”, rede evangélica de ação social, formada pela participação de várias dessas mencionadas ONGs, com o objetivo de serem ainda mais relevantes para os pobres; a ressurreição da AEvB e da FTL Brasil; o crescente interesse dos jovens, pastores e leigos, no significado dessa resposta; a retomada da questão da espiritualidade, que parte do segmento da missão integral começou, nos fazendo revisitar a patrística, nos encorajando a repensar o fazer pelo fazer são sinais que evidenciam esse movimento discreto mas firme do Espírito de toda a consolação que nos está reconduzindo a coerência.

É daqui que temos de continuar. Temos uma teologia para desenvolver, precisamos, sob essa nova ótica, repensar a teologia sistemática e a identidade protestante; temos uma espiritualidade para retomar, a espiritualidade do Cordeiro; temos uma igreja para edificar, de modo que, pelo menos nela, todas as raças desapareçam dando lugar à única raça que Deus criou, a raça humana, onde todos sejam gente como gente tem de ser, à imagem de Jesus de Nazaré; temos um país para influenciar, temos profecia a proferir (caso das novas tribos). Precisamos refletir, a partir dessa compreensão teológica, sobre o labor político e partidário; sobre economia; sobre genética; sobre bioengenharia (falar dos transgênicos); sobre a globalização, sobre a chamada pós-modernidade, sobre a nova sexualidade, sobre a fermentação religiosa, sobre o desafio do islã, sobre formas de fazer entendida a mensagem da cruz, num mundo em mutação; sobre a questão agrária e o meio ambiente; sobre a urbanização na América Latina; sobre a relação da igreja com o estado. Temos de nos encontrar mais, trabalhar mais juntos, abrir o círculo para que novos não só sejam atraídos, como já o estão sendo, mas, para que se sintam bem vindos e em casa. Temos um reino para viver e para manifestar. E não estamos sós: o Senhor Jesus está onde sempre esteve, reinando sobre sua Igreja e sobre todo o universo; e o Espírito Santo está aqui, pairando sobre o caos, soprando vida, levando a Igreja que está no Brasil a um avivamento que ainda não conheceu, o avivamento que chama à história o clamor de Jesus, retratado por Lucas: "Bem aventurados os pobres porque deles é o Reino de Deus.

Por Ariovaldo Ramos

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